terça-feira, julho 6

Liçoes precoces de anatomia

O primeiro curso basiquinho técnico profissionalizante que fiz foi um de enfermagem. Tava lá nas opções. Gostei.
Daí para o primeiro circulo de amizades foi fácil. As conversas de corredor, os novos colegas de turma,
os professores sádicos e loucos. Mas só uma coisa nos calava: as aulas de anatomia. Pedaços de pernas, braços, corpos dissecados e nosso silêncio ao redor. Eu não conseguia identificar artérias, veias, músculos, nada daquilo que cinzamente exalava o cheiro forte de substâncias químicas que insistiam em atrasar a volta ao pó, me fascinava. Nada daquilo me atiçava maior curiosidade do que a de saber quem viveu naquele pedaço de perna que estava ali na minha frente. Que resto de corpo se encaixou ali um dia. Por onde esta perna andou, que caminho seguiu até encontrar-se com o destino de ser um quebra cabeça para um olho arregalado como o meu? Que alma habitou ali? A sala era enorme, e várias mesas tinham "objetos" a serem estudados. Eu percebi a finitude na minha cara desde cedo.
Numa aula de segunda pós domingo entediante, chegou estalando de novo o cadáver de um homem de trinta anos. Inteiro. Encontrado sem saber onde e daquele jeito sem saber porque. A vida interrompida pra gente analisar.
- Não sei o que coube ali, dentro daquele coração visível a olho nu. Não sei se o que fez enquanto respirava. Só sei que as aulas acabaram, o curso concluído e eu nunca mais usei o diploma. Já tive chance prematura o suficiente pra  saber o que fazer enquanto utilizar as maravilhas do oxigênio.

Hoje nenhum sentimento negativo me atormenta, dou risada de todo gesto vil e abjeto.
Nenhum semelhante que use a ruindade me assombra.
Agora, se vai servir pra estudo, isso aí a vida que vai dizer.

EC

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